Ecologia: Capa De Bactérias Protege Anfíbios

Quando chegou a Ouro Preto (MG) para assumir um cargo de pesquisador na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), o biólogo Leandro Moreira logo estranhou que as áreas de proteção ambiental próximas ao campus estivessem repletas de sapos e pererecas. A surpresa tinha um motivo: concentrações elevadas de arsênio, um potente veneno sabidamente existente nos solos e águas da região.

O arsênio está presente de forma natural em Ouro Preto e em todo o Quadrilátero Ferrífero, e as atividades de mineração intensificaram a contaminação ao longo das décadas. Por ser tóxico e carcinogênico, está entre os elementos poluentes mais perigosos à saúde, ao lado de mercúrio, chumbo e cádmio – uma dose de 125 miligramas de arsênio pode matar uma pessoa adulta. Como sobreviveriam, então, animais que respiram através de uma fina pele e precisam estar em contato constante com a água, o que os torna extremamente vulneráveis à toxicidade ambiental?

A sobrevivência dos anfíbios em ambiente contaminado agora foi explicada, pelo menos em parte. O estudo coordenado por Moreira identificou bactérias capazes de resistir ao arsênio na pele de anfíbios da região. E foi além: conseguiu, pela primeira vez, indícios experimentais de que a resistência ao elemento químico é estendida ao seu hospedeiro, protegendo-o, em algum nível, da intoxicação.

Os anfíbios são conhecidos por serem sensíveis a mudanças de temperatura, radiação solar e poluentes. Se um ambiente natural é repentinamente perturbado pela liberação de alguma substância ou de mudança no clima, eles costumam ser os primeiros vertebrados a desaparecer. São, por isso, utilizados por muitos pesquisadores como bioindicadores de qualidade ambiental e apelidados de “canários de minas das mudanças climáticas globais”.

Nos animais vertebrados, a pele é a primeira linha de defesa contra patógenos e substâncias tóxicas. Os anfíbios têm a pele permeável, o que significa que as substâncias do ar e da água entram com facilidade. A microbiota cutânea, que é a comunidade de microrganismos composta por bactérias, vírus e fungos que vivem e prosperam na pele dos vertebrados, acaba sendo uma das únicas guaritas a separar o meio externo do interior do corpo.

Assim como as bactérias gastrointestinais, cuja importância para a saúde do organismo tem sido cada vez mais estudada, as cutâneas agem em grupo. Elas reconhecem a presença umas das outras e podem passar a secretar substâncias no meio que facilitam sua proliferação e proteção, formando uma camada conhecida como biofilme. Os pesquisadores da Ufop já tinham detectado a tolerância ao arsênio pelas bactérias em 2019. Mas isso não significava necessariamente que sapos e pererecas também se beneficiavam. Faltava provar se o biofilme formado pelos microrganismos conferia o poder de bloquear a substância.

Moreira e a bióloga Isabella Cordeiro, estudante de doutorado em seu laboratório, precisavam selecionar representantes de espécies que estivessem presentes tanto no ambiente rico em arsênio quanto em área livre de poluentes. Esse era o caso de cinco espécies – quatro pererecas e um sapo – que existem tanto no Quadrilátero Ferrífero quanto em uma reserva de mata fechada do município de João Neiva, no Espírito Santo, onde não há arsênio na água. Os dois viajaram então à reserva capixaba para recolher microrganismos da pele dos anfíbios.

Graças a um desses encontros fortuitos que podem acontecer quando se vai a campo, enxergaram, no caminho de volta, um criadouro de rãs-touro, espécie norte-americana criada comumente para alimentação. Os pesquisadores pararam para conversar com os ranicultores e descobriram que as peles das rãs eram descartadas após a retirada da carne. O proprietário se dispôs então a enviar o material, congelado, à universidade.

De volta ao laboratório e recebida a encomenda, os pesquisadores esterilizaram as peles de rã-touro e aplicaram quatro tratamentos diferentes às suas faces externas: bactérias tolerantes a arsênio da pele de anfíbios do Quadrilátero Ferrífero, bactérias presentes nos animais da área não contaminada e dois controles – um livre de bactérias e outro apenas com Escherichia coli. Os resultados apoiaram a hipótese da capa protetora: a passagem do arsênio foi bloqueada apenas nas peles revestidas por bactérias recolhidas de anfíbios nas áreas naturalmente contaminadas do Quadrilátero Ferrífero.

O grupo observou também que as bactérias do experimento proliferaram na solução contida no tubo de ensaio, o que pode significar que estejam adaptadas a tirar vantagem do arsênio, obtendo energia a partir do processamento desse composto. Em outras regiões do mundo contaminadas por metais e semimetais pesados, pesticidas, herbicidas e outros tipos poluentes, já foram feitos estudos sobre a composição e a tolerância das bactérias da microbiota cutânea de anfíbios, mas, segundo os autores, ninguém havia ainda avaliado o papel das bactérias na permeabilidade da pele aos contaminantes.

“Os anfíbios continuam sendo excelentes bioindicadores de perturbações ambientais, mas há também de olhar para o contato com cada tipo de ameaça e entender se a evolução teve tempo de resposta”, sugere Moreira. No caso das áreas ricas em minério, onde o contaminante já estava presente antes mesmo da intervenção humana, o tempo prolongado de exposição pode ter permitido que os microrganismos se adaptassem.

Foi pensando no tempo evolutivo necessário e em tipos de adaptação que o ecólogo brasileire Guilherme Becker, da Universidade Estadual da Pensilvânia (PSU), nos Estados Unidos, dedicou-se à pesquisa com anfíbios e répteis de diferentes países para entender como patógenos afetam a microbiota e como, na via inversa, os microrganismos afetam os patógenos. Seu grupo investiga também a influência de fatores do clima nessa interação.

Esse efeito é especialmente relevante no contexto de uma doença pandêmica preocupante entre os anfíbios, a quitridiomicose. O fungo Batrachochytrium dendrobatidis, também conhecido como quitrídio, é responsável pela extinção de dezenas de espécies de rãs, sapos e pererecas, e por afetar outras centenas.

Na PSU, o grupo coordenado pelo brasileiro, que é coautor do artigo sobre a tolerância ao arsênio, já descobriu, por exemplo, que períodos prolongados de seca diminuem a qualidade de proteção do microbioma cutâneo contra fungos. A invasão por outros patógenos, como vírus ou fungos, pode diminuir essa proteção.

O contato pode ser nocivo ou benéfico. É como a vacinação: com a exposição a concentrações pequenas, constantes e contínuas de vírus ou fungos ao longo do tempo, a tendência é de que a microbiota se torne mais combativa, com tipos de bactérias produtoras de substâncias antifúngicas, porque a exposição gradual altera a composição de espécies de bactérias que ‘moram’ no sapo naquele momento.

Alguns tipos bacterianos já foram identificados como bons contra o quitrídio, como algumas espécies de Pseudomonas, mas os pesquisadores ressaltam que nenhum deles, sozinho, garante proteção. A chave está na diversidade de espécies da comunidade de microrganismos vivendo e interagindo na pele. Quando um microbioma (ou uma floresta) é diverso, a invasão por novatos se torna mais difícil e o sistema como um todo tende a ser mais estável.

Se a diversidade é quebrada, a estabilidade também é, e o sistema se torna vulnerável, facilitando a entrada dos “inimigos”.

O papel antifúngico da microbiota cutânea tem recebido maior atenção por causa do interesse em buscar soluções e desenvolver tratamentos probióticos para a quitridiomicose, de acordo com a microbiologista mexicana Eria Caudillo. Ela ressalta outros potenciais desse conhecimento, como o desenvolvimento de filtros biológicos com bactérias resistentes a poluentes.

O rápido ciclo de vida das bactérias faz com que sejam capazes de responder às pressões evolutivas muito mais depressa do que os animais. Isso talvez as torne as melhores combatentes ante as alterações ambientais causadas pela ação humana. Mas não são invencíveis. Quando há impactos grandes e repentinos, não há diversidade, ou capa defensora, que resista.