No filme “O dia depois de amanhã”, o derretimento da calota polar do Ártico faz a circulação do Atlântico Norte entrar em colapso. A mudança nesse sistema de correntes oceânicas é o ponto inicial de uma catástrofe que joga o planeta em uma nova era do gelo. Segundo um artigo publicado em fevereiro na revista “Science Advances”, o braço atlântico da grande circulação oceânica que circunda os continentes está a caminho de se tornar tão fraco que pode alcançar um ponto de não retorno em decorrência das mudanças climáticas.
O trabalho não estima quando tal alteração poderia ocorrer, se daqui a poucos ou muitos anos. Estamos mais perto do colapso, mas não sabemos quão mais perto, disse, à agência Reuters, o oceanógrafo René van Westen, primeiro autor do estudo, que faz pós-doutorado na Universidade de Utrecht, nos Países Baixos. O artigo aponta que o enfraquecimento da Circulação de Revolvimento Meridional do Atlântico (Amoc), nome técnico do sistema, poderá provocar fortes anomalias no atual regime de chuvas e no padrão das temperaturas até o final do século.
Em linhas gerais, a debilidade da circulação tornaria o hemisfério Norte mais frio nas próximas décadas, em especial na América do Norte e no norte da Europa, e o hemisfério Sul mais quente. Não haveria uma nova glaciação global, como mostra, de forma exagerada, o longa-metragem de Hollywood, mas as implicações do fenômeno poderiam ser significativas. O trabalho é baseado em modelagem climática. Seus resultados reforçam as evidências observacionais e paleoclimáticas de que a Amoc perdeu 15% de sua intensidade nas últimas duas décadas e se encontra, hoje, em seu momento mais fraco do milênio.
Segundo o relatório de síntese do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), “há um grau médio de certeza de que a Amoc não vai colapsar de forma abrupta antes de 2100, mas, se isso ocorresse, muito provavelmente haveria mudanças abruptas nos padrões regionais de clima e grandes impactos nos ecossistemas e nas atividades humanas”. A versão anterior do relatório estima que a chance de ocorrer a paralisação completa da circulação atlântica até o final do século varia entre 4% e 46% em um quadro de emissões controladas de gases de efeito estufa (com aquecimento global não muito maior do que o atual) e entre 17% e 55% em um cenário com forte alta das emissões.
Em um artigo do fim do ano passado, pesquisadores de instituições brasileiras e alemãs observaram, também via modelos climáticos, os possíveis efeitos de um colapso da Amoc sobre a floresta amazônica. O estudo, publicado na revista Communications Earth & Environment, indica que, somando-se ao pior cenário de mudanças climáticas, a paralisação da circulação poderia, em um primeiro momento, amenizar o avanço da seca na região. “Mas isso seria apenas um atraso temporário no processo de savanização da Amazônia”, conta a oceanógrafa Regina Rodrigues, do Laboratório de Extremos Climáticos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), coautora do estudo.
A pesquisadora estima que esse retardo seria de aproximadamente uma década: o processo de savanização (a substituição da densa e fechada floresta tropical por uma vegetação mais esparsa, com poucas àrvores, similar à do Cerrado) se intensificaria por volta da década de 2050 em vez de 2040. “Esse atraso não produziria benefício algum à Amazônia e o enfraquecimento da Amoc teria grandes impactos no clima mundial”, comenta Rodrigues.
A debilidade da Amoc é causada, de forma indireta, pelo aquecimento global. As atuais temperaturas mais quentes fazem mais gelo derreter na região do Ártico. Isso eleva a quantidade de água doce e diminui a salinidade do oceano perto da parte sul da Groenlândia, local por onde a Amoc passa. A alteração torna menos intensa a circulação oceânica nessa região a ponto de colocar em risco a sua manutenção.
“A água menos salina na superfície do mar congela muito mais rapidamente”, explica a oceanógrafa Letícia Cotrim da Cunha, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Ao solidificar, a água menos salina forma uma camada bem pouco profunda de gelo acima da superfície do mar. “É como se puséssemos um tampão sobre aquela água que deveria afundar”, compara a pesquisadora.
O funcionamento da Amoc é importante para a manutenção do equilíbrio térmico do planeta em condições similares às atuais. Em seu ramo superior, a Amoc transporta água quente, que circula na superfície por ser mais leve, desde as altas latitudes do Atlântico Sul até o sul da Groenlândia. Nesse ponto, as águas superficiais perdem calor para a atmosfera, ficam mais frias e densas e afundam. “Chamamos esse processo de convecção profunda”, diz o oceanógrafo físico César Barbedo Rocha, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP). As águas que submergiram são transportadas pelo ramo inferior da Amoc e passam a circular a 3 ou 4 mil metros de profundidade, iniciando seu caminho de volta às altas latitudes do Atlântico Sul.
Ao passar pelos trópicos e chegar à porção sul do planeta, parte dessa água fria retorna à superfície devido à mistura com águas mais quentes sobrejacentes e de fortes ventos de oeste ao redor da Antártida. Esse é o processo denominado ressurgência. A Amoc, portanto, é um padrão de circulação entre os hemisférios que transporta, em altas profundidades, águas frias do Ártico para a Antártida e, em superfície, águas quentes para o norte.